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domingo, 5 de janeiro de 2014

De portas abertas


O que haveria ao se abrir uma Porta de Academia? É possível encontrar uma narrativa ficcional, um relato autobiográfico, um perfil de Otto Lara Resende ou um comentário sobre a violência nas cidades.

Estão lá também uma carta para o ex-governador Ciro Gomes, uma análise sobre a chegada do homem à Lua e uma opinião sobre o ato de ler. Certamente não é uma maçaroca de texto ilegível e empolada, porque escrita por um mestre da concisão e precisão, que foi o contista (e neste caso também cronista) Moreira Campos.

Reunidas, as “portas de academia”, croniquetas produzidas para o jornal O POVO de 1987 a 1994, traçam um panorama das preocupações do autor - das mais prosaicas às mais elevadas - e mapeiam a vida cultural da cidade do período.

A princípio impressas no antigo caderno Fame e posteriormente no Vida&Arte, os textos foram todos condensados em livro lançado ano passado pelas edições UFC. Em 1994, já haviam sido organizados em dois volumes pela família. A esposa de Moreira, Maria José Alcides Campos, a dona Zezé, manteve tudo o que era publicado com o nome do escritor.

“Ele conseguiu se impregnar do tempo nervoso do jornal por meio de uma escrita ágil com a certeza da fugacidade. Dia seguinte, os peixes estariam sendo embrulhados, diz o provérbio popular”, escreve o pesquisador Gilmar de Carvalho na apresentação do volume.

Moreira adora comentar os livros que está lendo. Faz pequenas apreciações críticas. Sapeca vez ou outra um poema que o emociona. Conta das caminhadas com dona Zezé, das idas ao mar do Icaraí, as lembranças de Fortaleza.

“Porta de Academia contribui para a compreensão do que fez Moreira Campos, do que viveu, de sua visão de mundo e de literatura”, acrescenta Gilmar. (Alan Santiago)

Saiba mais

No próximo dia 23 o Leituras em Prosa e Verso, programação do Espaço O POVO de Cultura, que funciona na sede do jornal (av. Aguanambi, 282), lembra o centenário de Moreira Campos. Haverá uma conversa com o professor Sânzio de Azevedo, colega no Curso de Letras da UFC e na Academia Cearense de Letras, mediada por Carol Campos, neta do contista. A partir das 19 horas. Entrada franca
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Leia mais sobre o livro Porta de Academia no blog do professor Carlos Carvalho: http://blogdocarloscarvalho.blogspot.com.br/2013/12/porta-de-academia.html 

Os caminhos de Moreira Campos


Dentro da ficção moderna, o conto tem sofrido radicais transformações. À experiência naturalista e exterior e à estética psicológica, a criação literária tem acrescentado novas dimensões, além do enriquecimento conteudístico provocado pela inserção de temas regionalistas. A narrativa não se prende mais à estrutura fixa de começo, meio e fim, herança dos cânones antigos, de modelos fixos consagrados pela antiguidade clássica, aceitos e seguidos por grande número de escritores, ainda nos dias atuais. Ao relato seguido e objetivo das histórias, opõe-se a técnica da simples evocação sugerida pelo instantâneo fotográfico ou por flagrantes de atmosferas intensamente poéticas. Esses autores reagem contra o descaso formal e estrutural das gerações anteriores em favor da preocupação quase artesanal com o rigor da forma, a arquitetônica estilística, o manejo consciente da expressão escrita.

O escritor Moreira Campos é considerado o mais representativo contista do Grupo CLÃ, movimento considerado grande marco do modernismo nas letras cearenses. O livro de estreia – Vidas Marginais (1949)– caracteriza-se por conter uma notável dose de sentimento humano. Sua literatura envolve uma complexidade muito além do engajamento com problemas políticos e sociais: preocupa-se em criar um conto novo, que não se resuma em uma só leitura, mas que convoque o leitor a um processo de constante recriação da obra. A seriedade o impede de jogar com dados inverossímeis ou de apresentar ideias vazias ou herméticas. Quando tem uma ideia, não se precipita – espera as assimilações, as superposições de imagens, até o momento da criação, quando o conto surge tranquilo, harmonioso, autêntico.

Em O puxador de terço (1969), a linguagem é, sem dúvida, o elemento de maior significação da obra. Apresenta-se límpida, correta, espontânea, em períodos curtos e incisivos. O modo de introduzir os diálogos, o valor do ritmo, a precisão vocabular e até mesmo certa insistência em passagens descritivas, válidas na tipificação das personagens, particularizam o estilo do escritor Moreira Campos. As estórias criam uma unidade estrutural, revelando caráter sintético e agudo poder de observação do autor. Isso não significa dizer que alguns contos de Moreira Campos sejam simples fotografias da realidade exterior – inexiste em sua obra o cunho puramente documentário ou jornalístico.
 
Apuro estilístico

Preocupa-se em valorizar as minúcias, os traços caricaturais de suas personagens. Via de regra, dispensa apresentações – abre o conto pondo a personagem em ação, sempre ficando na posição de observador ou de analista. É bem de seu estilo o verbo na 3ª. pessoa, jamais na 1ª, como o fazia no início de sua carreira literária. Partindo das personagens, o escritor analisa os costumes, os diversos aspectos da sociedade que toma como referência, com singular dose de humor e ironia. Moreira Campos evidencia uma concepção pessimista da natureza. Como bom leitor de Machado de Assis e de Graciliano Ramos assume traços de conteúdo e de estilo bem peculiares aos autores citados: a constância da morte, da loucura, da maldade humana e do erotismo são temas provocados com muita habilidade, fugindo do lugar-comum e do sentimentalismo. Existe uma alternância entre a narração e o diálogo, acentuada pela não interferência do autor, em qualquer sentido.

A linguagem retrata a fala do povo: percebe-se toda a autenticidade das expressões populares o que reforça uma tendência da obra dentro da literatura regionalista. O contista convida o leitor ao processo de recriação, contudo observando certas limitações – o esmero com a forma, o cuidado em medir palavras, em cadenciá-las no ritmo singular do texto evidenciam a concepção clássico-realista do escritor.

“Amoleceu-se mais na parede, deitou os olhos cansados no chão varrido. Depois um pigarro. Uma asa qualquer corou a tristeza da noite, que vinha grossa, enrodilhando-se na mata.” (CLÃ no. 11, pg. 76)
 
Síntese

O contista refazia os contos sempre no sentido de captar a essência de sua trama e de sua urdidura, dispensando o que ele considerava acessório. No conto “Os doze parafusos”, publicado inicialmente no número 25 da Revista CLÃ (1970), uma mulher enlouquecida iria vingar-se da traição do marido, jogando-se do andar de seu apartamento. No estado de loucura em que se encontrava, essa vingança seria o remorso que o marido teria que amargar para o resto de sua vida, vendo-a tragicamente estendida no asfalto: “O velho esclerosado da janela em frente teve um instante de lucidez quando viu o corpo descrever no ar a parábola do salto”. (p. 134)

“O corpo teve estremecimentos, encolheu-se como uma mola. Depois surgiu por baixo da cabeça o filete de sangue, que se espalhou no asfalto. Inúmeras pessoas, banhistas. A moça com a barraca de praia e o vidro de óleo na mão. A senhora que empurrava o carrinho de compras do supermercado. A senhora idosa tivera um ataque histérico e assegurava ter escapado por milagre: ela lhe caíra aos pés. Trouxeram-lhe uma cadeira e ela mal segurava o copo de água”. (p. 135)

No livro Os doze parafusos, publicado anos depois, Moreira Campos tratou de reduzir o conto, retirando a parte descritiva e supérflua dos exemplos citados: se, por um lado, expôs a essência do drama existencial vivido pela mulher em toda sua dimensão, por outro, no entanto, tirou um pouco do encanto da “parábola no ar” traçada pela queda presenciada pelo velhinho que morava no apartamento em frente. Também os múltiplos detalhes que envolvem a contextualização desse trágico acontecimento desapareceram de cena, enxugando mais ainda o pequeno conto, de acordo com a nova estrutura da contística de Moreira Campos.

Vera Moraes é escritora e professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada do Curso de Letras da UFC

Contos da Superfície


Preciso na criação de climas, somos transportados em poucas palavras a imagens reconhecíveis e acontecimentos singulares (porém marcantes) do cotidiano do Ceará. A pele das coisas fixa-se mais na memória que os nomes próprios: tipos físicos, gestos, caminhos, edificações, atravessam temporalidades diferentes e falam de algo muito íntimo de uma coletividade. Seus acontecimentos se desenrolam nos quintais das casas de vão comprido e fachada estreita, saindo dos buracos incrustrados nos muros dos terrenos baldios da cidade, no porto, na casa do caseiro de sítio, no pequeno circo mambembe.

Centrado no universo humano (embora os animais estejam muito presentes) muitas vezes seus personagens nos são guias que permitem explorar esses espaços de Fortaleza e interior do Ceará. Pode-se afirmar isso, por exemplo, da condição dos mais velhos em nossa cidade sem calçadas (”A visita ao filho)”, das relações onde é forte submissão da mulher a uma sociedade patriarcal, machista, que a leva ao esgotamento pleno (”Os doze parafusos”), do desejo entre jovens primos, uma puberdade vivida entre a urbanidade e o campo (”A Gota Delirante”), do lazer das classes abastadas, seu sistema de valores (”Dizem que os cães vêem coisas”, “Lama e Folhas”).

Cronista das superfícies, Moreira Campos consegue unir, em sua obra, muitas facetas de uma sociedade em movimento, observando camadas de convivência que se sobrepõem, se acumulam e, no seu acúmulo, falam de muitas partes de um todo, de um povo.
 
Fred Benevides é cineasta. Ele tem dirigido uma série de curtas sobre a obra de Moreira Campos. O primeiro deles é o filme As Corujas, de 2009.



Fonte: http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2014/01/04/noticiasjornalvidaearte,3185179/contos-da-superficie.shtml

100 anos de Moreira Campos


O VIDA E ARTE CULTURA dedica esta edição ao escritor Moreira Campos, que faria 100 anos amanhã. Sua vida atravessa a história de Fortaleza e as várias mudanças por que a cidade passou ao longo do século XX. O escritor era um apaixonado pela capital onde escolheu viver


Mesmo tanto tempo depois, Fortaleza ainda conseguia extrair exclamações de Moreira Campos. Dois meses antes de morrer, o escritor – que completaria 100 anos amanhã – fez um passeio pela cidade. No carro do filho, o advogado Cid Campos, ele olhava pela janela, com o sentimento de um expedicionário estrangeiro, o lugar onde vivia desde os anos 1930.
“Porque Fortaleza já é outra, com a sua modernidade, progresso, floresta de espigões, edifícios em massa, largas avenidas, novas ruas, asfalto. A cada trecho uma descoberta, um deslumbramento, uma revelação”, escreve na última crônica publicada em sua coluna Porta de Academia, editada neste jornal, em março de 1994.
Veja galeria de imagens com as primeiras edições dos livros do escritor cearense Moreira Campos, acervo do escitor Pedro Salgueiro
Mesmo tanto tempo depois, Fortaleza ainda conseguia extrair exclamações de Moreira Campos. Dois meses antes de morrer, o escritor – que completaria 100 anos amanhã – fez um passeio pela cidade. No carro do filho, o advogado Cid Campos, ele olhava pela janela, com o sentimento de um expedicionário estrangeiro, o lugar onde vivia desde os anos 1930.
“Porque Fortaleza já é outra, com a sua modernidade, progresso, floresta de espigões, edifícios em massa, largas avenidas, novas ruas, asfalto. A cada trecho uma descoberta, um deslumbramento, uma revelação”, escreve na última crônica publicada em sua coluna Porta de Academia, editada neste jornal, em março de 1994.
Veja galeria de imagens com as primeiras edições dos livros do escritor cearense Moreira Campos, acervo do escitor Pedro Salgueiro
Cid circulou com o pai nas proximidades do Passeio Público. Descidos mais para o mar, além da Santa Casa de Misericórdia, foram parar num hotel cujo “luxo” e “riqueza” faziam lembrar “uma página de Mil e Uma Noites”.

Em essência, o mesmo encantamento que estava presente quando, ainda adolescente, ele se hospedava no (modesto) Hotel Bitu, dos mais vultosos no fim dos anos 1920 na capital.

Acompanhado do pai, pujante comerciante português sediado em Lavras da Mangabeira, o futuro professor de Letras da UFC desfrutava da pensão e admirava, de lá, a antiga igreja da Sé, no Centro. “Tinha a feitura das nossas igrejas coloniais em sua estrutura, com o seu cruzeiro”, disse em entrevista para o livro Roteiro Sentimental de Fortaleza.

É uma de suas primeiras memórias da cidade. Lembranças que, ao se mudar para cá com a família em 1930, só vão se consolidando e se transformando numa espécie de espólio amoroso de um dos maiores contistas brasileiros.

Sem esconder a excitação, ele se recorda dos bondes, com seu saboroso cheiro de graxa, seus bancos “cara-dura” onde vez ou outra sentavam-se damas que eram paqueradas; em cada esquina, os lampiões a gás, as cadeiras na calçada; a Praça do Ferreira.

E também a grande paixão, além da literatura: o cinema, com filmes exibidos no cine Polytheama, no Majestic ou no Moderno. Porque lançamentos demoravam demais a chegar assistia à mesma fita diversas vezes. “Teria sido diretor de cinema, se houvesse possibilidade em Fortaleza. Mas o meio restringe muito as criaturas”, analisa no mesmo livro.

Sempre foi anticarnavalesco. Enxergava de longe Zezé, apelido da apenas namorada e futura esposa Maria José Alcides Campos, passar num carro do Ideal Clube, fantasiada. Por essa explosão carnavalesca, ela acabaria encabulada, porque conhecia o jeito arredio dele aos festejos.

O casamento dos dois, que iniciou em 1937, durou a vida toda. Após a união, foram construindo para si uma cartografia própria da cidade. Moraram na Rua dos Tabajaras, na Praia de Iracema. Em seguida se mudaram para o Benfica. Na rua Juvenal Galeno, ergueram uma casa e um escritório, o Buraco da Jia, onde Moreira mantinha máquina de escrever e centenas de livros.

Hoje não é mais possível encontrar a residência, demolida nos anos 2000 para dar lugar a um estacionamento – assim como já parecia ter previsto em “As Três Irmãs”, conto publicado em 1985.

No fim dos anos 1980, um apartamento na rua Beni de Carvalho foi a última parada. Quando não estava escrevendo e lendo, ia ao calçadão da Beira-Mar, verificava a praia do Náutico onde na juventude recebia pedradas dos pescadores por seu hábito de nadar. “Muitas vezes, em passeios pela praia, dizia que a cidade estava mais bela”, recorda a artista plástica e filha Marisa Campos, que mora no Recife.

Era visto também pilotando seu fusca verde em nossas ruas ainda calmas, gostava de encontrar os amigos no cooper que fazia na praça em frente ao Hospital Geral.

Antes de se aposentar, curtia trocar dedos de prosa com os vários alunos que o abordavam no bosque do curso de Letras. Divertia-se contando para os netos seus projetos literários, sempre nascidos de uma semente da realidade.

“Meu avô conseguia ser moderno, conversar com os jovens, porque tinha cabeça avançada, mas sem abrir mão de uma profunda educação, com uma elegância natural”, destaca a neta Carolina Campos, filha da também falecida Natércia Campos. Moreira nunca saiu de Fortaleza – a não ser por breves momentos quando ministrou pequenos seminários de literatura brasileira na Universidade de Colônia, na Alemanha. Apesar disso, ou por isso mesmo, sempre publicou por editoras do sudeste. “Livro na província é a pedra no poço”, dizia.

A vida dele tinha sido trilhada nessa voragem que se tornou Fortaleza, uma polifonia de vozes que abasteceram sua literatura e também a vontade de permanecer. Embora pouco se refira a ela nos contos, há textos dedicados à cidade. Um deles é um poema, de Momentos (1976), o único livro de poesia da bibliografia.

“Não quero te cantar particularmente, se estás toda em mim, amante”, começa o primeiro dos últimos quatro versos. E prossegue: “Por ti, deixei pedaços da minha infância e adolescência. E hoje, fiel, em ti me recolho para a solidão da minha velhice”.

SAIBA MAIS
 
O pai do escritor era um português cuja primeira atividade no País foi construir estradas. Daí ele ter morado em várias cidades do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
 
Em Lavras da Mangabeira, o pai comercializava peles, cera de carnaúba e algodão até que um incêndio destruiu seu negócio.
 
Tuberculoso, o pai de Moreira Campos trouxe a família para a capital e partiu para Quixadá em busca de um clima mais ameno. Morreu logo. Logo depois, a mãe do escritor morreria. Ele passou a morar com o primo, o jornalista Jáder de Carvalho.
 
Foi uma adolescência difícil. Conciliava trabalho e estudos. Frequentou o Liceu do Ceará. Cursou Direito e Letras.